Ludmila Nikolaevna sempre se orgulhou do seu tino para a economia doméstica. No apartamento de dois quartos na Rua Pervomaiskaya, onde vivia com Sergei, tudo era planejado ao cêntimo: mantimentos para a semana, produtos de limpeza, até o papel higiénico era comprado estritamente segundo uma lista. Sergei costumava gozar com o cuidado excessivo da esposa, mas no fundo admirava-se com a sua capacidade de criar um ambiente acolhedor com tão pouco.
— Liusia, não te stresses por antecipação — dizia ele sempre que a via contar o dinheiro antes de ir às compras. — Vai correr tudo bem.
— É fácil para ti dizer isso — respondia ela, dobrando cuidadosamente as notas na carteira. — Mas eu tenho de planear tudo. Afinal, sou eu quem gere a casa.
Ludmila trabalhava como administradora numa pequena clínica privada, e o seu salário dependia do número de pacientes e eventuais prémios. Sergei trabalhava numa empresa de segurança — pagavam-lhe menos, mas pelo menos o ordenado era sempre pontual. Juntos, conseguiam viver com o essencial e até poupar um pouco para as férias.
Tudo mudou numa terça-feira, com um telefonema de Andrei — o irmão mais novo de Sergei.
— Serguei, dá-me uma mão — ouviu-se a voz cansada no telefone. — Tivemos um vazamento no apartamento, os vizinhos de cima inundaram tudo. Precisamos de fazer obras. É coisa de duas, três semanas no máximo. Podemos ficar aí? Eu e a Natasha arranjamos um canto, nem que seja no sofá da cozinha.
Ludmila, que estava no corredor e ouviu a conversa toda, não ficou nada satisfeita com a notícia. Conhecia o Andrei e a esposa — eram pessoas simpáticas, em teoria, mas… quatro pessoas em 42 metros quadrados, um frigorífico, uma casa de banho. E o mais importante: o orçamento doméstico estava calculado para dois.
— Claro, venham — respondeu Sergei sem sequer olhar para a esposa. — A gente desenrasca.
Depois de desligar, Ludmila começou a protestar, baixinho:
— Sergei, pensaste que agora as despesas vão aumentar? Comida, contas…
— Vá lá, não compliques — respondeu ele, com um gesto. — São da família, não são estranhos.
— Eu sei que são da família. Mas sou eu quem vai ter de cozinhar mais, ir às compras mais vezes, gastar mais…
— O Andrei trabalha, não é nenhum pobretanas. Deve ajudar com as compras, sim.
Ludmila ficou calada, embora a intuição já lhe dissesse que a coisa não ia correr como o esperado.
Andrei e Natasha chegaram no sábado de manhã com duas malas enormes e muitos pedidos de desculpa.
— Liusia, muito obrigada — disse Natasha, abraçando-a calorosamente. — Vamos tentar não incomodar. Nem vais notar que estamos aqui.
— Ora essa — respondeu Ludmila, já a pensar onde haveria de colocar os pertences deles. — Somos família.
Andrei era parecido com Sergei, mas uns cinco anos mais novo e muito mais falador. Natasha — uma loira bonita de trinta e poucos anos — trabalhava num salão de beleza. Davam a impressão de estar habituados a uma vida bastante confortável.
— Aquilo foi mesmo um desastre — dizia Natasha, sentada à mesa da cozinha com um café na mão. — Por sorte, a mobília escapou quase toda.
— E quanto tempo vai durar o conserto? — perguntou Ludmila com cautela.
— Não sabemos ao certo — encolheu os ombros Andrei. — Pelo menos um mês e meio.
Ludmila suspirou involuntariamente. Um mês era muito tempo.
Os primeiros dias passaram relativamente tranquilos. Natasha realmente tentava ajudar com a limpeza. Andrei e Sergei passavam as noites a jogar dominó e relembrar a infância. Ludmila ia-se habituando à casa mais cheia.
Mas a meio da semana começaram os sinais de alarme. Uma manhã, ao abrir o frigorífico, Ludmila notou que a mortadela — quase inteira no dia anterior — desaparecera. O queijo também sumia a uma velocidade estranha.
— Talvez tenha sido impressão minha — pensou. — Pode ter-me parecido.
Mas na sexta-feira, o pão comprado dois dias antes já tinha acabado e restava só um fio de manteiga. A dúvida deu lugar à certeza.
— Sergei — perguntou ela à noite, enquanto se preparavam para dormir. — Não achas que a comida está a desaparecer muito mais depressa?
— Agora somos quatro, é normal que se coma mais — encolheu os ombros.
— Mas o dobro?
— Deixa de contar tudo ao milímetro. É chato.
Ludmila ia responder, mas calou-se. Talvez estivesse a exagerar.
Na segunda semana, os problemas financeiros tornaram-se evidentes. Ludmila reparou que tinha gasto quase o dobro do habitual em comida. O dinheiro, que devia durar até ao fim do mês, evaporava-se.
E o mais irritante: nem Andrei nem Natasha ofereceram-se para contribuir. Pelo contrário — na terça-feira, Ludmila encontrou um bilhete colado no frigorífico:
«Liusia, não te esqueças de comprar:
– Requeijão magro
– Iogurtes de fruta
– Salmão fumado
– Enchidos
– Fruta
Obrigada! Natasha»
Ludmila leu e releu o papel, sem acreditar. Salmão?! Ela própria só comprava em ocasiões especiais!
— Sergei, olha para isto — mostrou-lhe o bilhete.
Ele franziu a testa ao ler:
— Que descaramento.
— Só um bocadinho de descaramento? Agora fazem-me listas como se eu fosse empregada doméstica!
— Talvez quisesse ajudar, para não te esqueceres de nada.
— Ajudar?! Então por que não escreveram: “levamos nós”? Por que dizem “não te esqueças”?
Sergei hesitou:
— Talvez achem que tu sabes onde comprar mais barato…
— Sergei, estou cansada — disse ela em voz baixa. — Acordo mais cedo que todos, faço pequeno-almoço para quatro, vou trabalhar, volto, vou às compras, cozinho, lavo a louça… e ainda me fazem listas!
— Estás a exagerar. A Natasha ajuda na limpeza.
— Passar o aspirador uma vez por semana é ajudar? Abre os olhos! Eles vivem à nossa custa!
— Não digas isso. É o meu irmão.
— E então? Ser irmão dá direito a viver às custas dos outros?
— Eles estão numa emergência!
— Há um mês estavam. Agora vivem aqui como se fosse casa deles. Ontem o Andrei trouxe cerveja e batatas fritas — esse é o «contributo» dele? E o pão e leite sou eu que pago?
Sergei calou-se. Ludmila sentia a mágoa crescer por dentro.
— Fala com ele — disse ela firme. — Que pelo menos passem a comprar a parte deles.
— Tenho vergonha…
— E eu? Não tenho vergonha de gastar o meu dinheiro com eles?
— Eles não são estranhos!
— Para a minha carteira, são.
A conversa com o irmão nunca aconteceu. Sergei ia adiando, arranjando desculpas. Enquanto isso, os bilhetes no frigorífico continuavam:
«Liusia, compra:
– Carne picada
– Natas caseiras
– Ervas frescas
– Leite gordo
– Ovos caipiras
Beijinhos, Natasha»
Ludmila olhava para mais um bilhete e sentia a paciência esgotar-se. Carne para hambúrgueres?! Ela própria só comprava carne nos fins de semana — e era sempre a mais barata.
Na quinta-feira, ao voltar do trabalho, encontrou Natasha na cozinha a vasculhar os armários.
— Liusia, onde está o azeite?
— Azeite?
— Sim, vi aqui uma garrafinha ontem.
— Temos óleo de girassol. Azeite só compro em ocasiões especiais.
— Ah, está bem — respondeu Natasha com naturalidade. — Dá para o gasto.
E começou a tirar do frigorífico tomates frescos, pimentos, mozzarella… tudo coisas que Ludmila planeava usar com moderação.
— Natasha — começou Ludmila. — Vocês já pensaram em ajudar com as compras? Os gastos aumentaram muito.
Natasha olhou para ela, surpreendida:
— Há algum problema? Mal comemos nada.
— Nada? A minha despesa duplicou!
— O que podemos fazer? Somos mais agora. Mas está mais animado, não está?
— Está sim, mas o dinheiro não cresce nas árvores.
— Não te preocupes com pão e leite. Estamos aqui só temporariamente.
Ludmila corou de indignação.
— Pão e leite?! Eu estou a sustentar quatro pessoas com o meu ordenado, entendes?
— Desculpa… É que em casa sempre tínhamos tudo à mão.
— Isso era na vossa casa. Aqui é a minha casa!
Natasha fez beicinho:
— Pensava que éramos família…
— Na família, todos ajudam — não vivem à custa dos outros!
Nesse momento, Sergei entrou na cozinha.
— O que se passa? Por que estão a gritar?
— A Liusia está outra vez chateada com a comida — queixou-se Natasha. — Diz que não há dinheiro.
Sergei lançou um olhar culpado à esposa:
— Liusia, vá lá…
— Vá lá o quê?! Eles estão aqui há um mês, comem tudo, e ainda me fazem listas?!
— Liusia, acalma-te…
— Não me vou acalmar! A partir de agora, eu só compro comida para nós dois! Eles que se arranjem.
— Estás a falar a sério?
— Muito a sério. O meu salário não é um poço sem fundo.
— Que maneira é essa de falar?! — indignou-se Natasha.
— Muito simples: querem comer? Comprem a vossa comida. Não sou vossa cozinheira.
— Sergei, ouviste o que ela disse?
— Ouvi — respondeu ele em voz baixa.
Depois do escândalo, a tensão instalou-se na casa. Andrei e Natasha ficaram mais calados. Sergei, cabisbaixo. Ludmila sentia alívio… e uma pontinha de culpa.
No dia seguinte, comprou comida apenas para dois: dois iogurtes, meio quilo de enchidos, um pacote de requeijão. Na caixa, o total era bem mais baixo.
Guardou tudo cuidadosamente no frigorífico — sem oferecer nada aos “convidados”.
Ao jantar, serviu duas porções de batatas com almôndegas — para ela e para Sergei.
— E para nós? — perguntou Natasha.
— Façam vocês com a vossa comida — respondeu Ludmila, calma.
— Sergei! — exclamou Natasha.
— Natasha, preparem vocês algo. Também não contamos bem hoje.
— Mas pensávamos que…
— Já chega — cortou Andrei. — Vamos ver o que temos.
Foram até ao frigorífico. Ludmila ouviu sussurros irritados, portas a abrir e fechar.
Sergei acabou a sua refeição e disse:
— Talvez tenhas sido dura demais?
— Não — respondeu Ludmila. — Alimentei-os durante um mês. Já chega.
— Mas eles estão numa situação difícil…
— Sergei, situação difícil não é desculpa para viver à custa dos outros. Se há dinheiro para cerveja, cigarros e cosméticos — há dinheiro para comida.
Ele ia responder, mas ouviram a voz de Natasha na cozinha:
— Andrei, não há nada! Só pão duro!
— Fala mais baixo… — sussurrou Andrei.
Ludmila ouviu tudo. E soube: tinha razão.
Nos dias seguintes, reinou um silêncio tenso. Andrei e Natasha não esperavam esta mudança. Tentaram várias vezes insinuar que a esposa de Sergei “estava demasiado forreta”, mas ele começou a dar razão à mulher — especialmente depois de ficar sem jantar.
Na sexta-feira à noite, Sergei chegou cansado e com fome. Ludmila ainda estava no trabalho. Abriu o frigorífico e só encontrou pepinos em conserva e recipientes vazios.
— Andrei — chamou. — Não há nada para comer?
— Comemos o que havia. Pensámos que a Ludka traria comida como sempre.
— Ela disse que não ia mais comprar.
— Pensámos que era da boca para fora. Que passava.
Sergei vasculhou os armários, encontrou massa velha e uma lata de conserva.
— Andrei, amanhã vão às compras, sim? Estou a chegar a casa e não há nada.
— Tu estás a falar a sério? Somos vossos hóspedes!
— Hóspedes há um mês.
— E então? És o irmão mais velho — devias ajudar.
— E ajudo! Com casa e contas. Mas alimentar-vos é demais.
Andrei ficou ofendido:
— O irmão mais velho nega um pedaço de pão!
— Não se trata do pão. Trata-se de viverem às nossas custas!
— Mas não foi por mal…
— E os bilhetes no frigorífico? E o salmão?
Andrei hesitou:
— Foi a Natasha… para facilitar.
— Facilitar é cada um comprar o que come!
No sábado, Andrei foi às compras. Voltou com dois sacos, cada produto com fita adesiva e a etiqueta “A+N”.
— Agora ninguém pode dizer que comemos o que não é nosso — disse.
Ludmila viu aquelas etiquetas e sentiu tristeza. Antigamente, não precisava de etiquetar a comida em sua própria casa. Agora, cada pedaço era «território marcado».
A divisão dos alimentos criou tensão. Cada ida ao frigorífico parecia uma operação de inventário. “A+N” — deles, “S+L” — nosso.
Sergei enganou-se duas vezes e pegou “óleo que não era dele” — levou olhares reprovadores. Ludmila tentava ignorar, mas sabia: isto não podia continuar.
O ponto de rutura foi a natas. Ludmila comprou uma embalagem para as panquecas, etiquetou e guardou. Na manhã seguinte, estava vazia.
— Natasha, foste tu que usaste as minhas natas?
— Usei só um bocadinho, para uma salada. Achei que não notavas.
— Não notava?! Estava com etiqueta!
— São só natas, qual é o drama?
— Comprei para panquecas. Agora já não há.
— Vai comprar mais.
— Compra tu! Foste tu que comeste!
— Meu Deus, que mesquinhice!
Ludmila olhou para ela e percebeu: estas pessoas nunca iam entender. Para eles, “dos outros” era apenas uma abstração. Não distinguem entre “pedir” e “tirar”, entre “ajuda” e “abuso”.
— Sergei — chamou. — Fala com o teu irmão. Que procurem outro lugar.
— Liusia, vá lá…
— Não aguento mais! Que saiam!
Sergei olhou para ela. Depois para Natasha, que bufava de indignação.
— Natasha — disse, finalmente. — Talvez ela tenha razão. Isto assim não pode continuar.
— Como não? Somos da família!
— Sim. Mas vocês incomodam muito.
Na semana seguinte, Andrei e Natasha mudaram-se para uma casa alugada. Despediram-se friamente.
— É assim que se desfazem laços — murmurou Andrei. — Por causa de comida.
— Não por comida — respondeu Sergei. — Por falta de respeito.
Depois que se foram, a casa voltou a ser espaçosa e silenciosa. Ludmila tirou as etiquetas, deitou fora as listas. Comprou comida só para dois — e sentiu alívio.
— Desculpa não ter-te apoiado logo — disse Sergei à noite.
— Eu entendo. É teu irmão.
— Sim… mas tu és minha mulher. E tinhas razão.
Ludmila assentiu. Não estava zangada com Andrei e Natasha. Não eram pessoas más — apenas diferentes. Para eles, “família” significava depender dos outros. Para ela, significava respeito e cuidado mútuo.
E foi essa diferença que fez toda a diferença.
Naquele pequeno apartamento de dois quartos na Pervomaiskaya, voltou a reinar o verdadeiro conforto.