Zhenya estava sentada numa velha cadeira de madeira no quarto apertado do dormitório, segurando com força contra os joelhos um smartphone gasto — um presente do orfanato, a única lembrança do passado e sua única ligação com o mundo exterior. A luz cinzenta de outubro entrava pela janela embaciada, iluminando o ecrã onde lentamente carregavam anúncios de emprego. Ela precisava de uma vaga com alojamento incluído, pois alugar um apartamento na cidade estava muito além das suas modestas possibilidades. Não tinha pais, nem apoio, nem poupanças — apenas um diploma de cozinheira, alguma experiência em acampamentos e lares, e a determinação de começar uma nova vida.
Havia muitos anúncios, mas a escolha parecia incrivelmente difícil. Zhenya lia cada um com atenção, comparando as condições, os requisitos e os salários. Parou em duas opções: a primeira — uma família numerosa com três crianças barulhentas e uma avó severa; a segunda — mais tranquila, sem tanta agitação. Decidiu ir primeiro à casa da família com crianças.
A porta foi aberta por uma mulher de meia-idade, que olhou Zhenya de cima a baixo com frieza.
— És tão jovem. Tens alguma experiência?
— Tenho, — respondeu Zhenya calmamente. — Tenho diploma de cozinheira, trabalhei em acampamentos e num lar de idosos.
— Isso não conta, — interrompeu-a a mulher, fria. — Restauração é uma coisa, cozinha familiar é outra. Aqui é preciso cuidado, sensibilidade, gosto e atenção.
Enquanto falava, três rapazes passaram aos gritos numa carrinho de brinquedo, e um deles bateu sem querer no braço de Zhenya, fazendo-a estremecer de dor. Ela suspirou. Sentiu o coração apertar-se — percebeu que ali não era bem-vinda, que não havia lugar para bondade, compreensão ou sequer calor humano.
O segundo endereço revelou-se muito mais promissor. Quem abriu a porta foi um homem de cerca de quarenta anos — alto, com um olhar gentil e feições suaves. Chamava-se Sergey Platonovich Volnov. De imediato ofereceu água, chá ou café a Zhenya.
— Obrigada, água é suficiente, — agradeceu ela. — Está um bom tempo hoje, gostei de caminhar até aqui.
Sentaram-se à mesa da cozinha e começou a habitual conversa: idade, experiência, formação, onde cresceu. Quando Zhenya disse que cresceu num orfanato, que a mãe a tinha deixado na maternidade, o homem acenou com a cabeça, aceitando a informação sem julgamento nem pena.
— Espero que te sintas em casa. Aqui as pessoas ficam muitos anos, conheço alguns desde crianças.
Ele analisou atentamente os documentos, demorando-se numa fotografia de uma menina com caracóis ruivos e um largo sorriso.
— Pareces ser esperta. Agora vou mostrar-te a cozinha e o teu quarto.
A família era pequena: Sergey Platonovich, a esposa Margarita Eduardovna, o filho de cinco anos Kirill, uma ama e uma empregada chamada Nina. Zhenya recebeu um quarto pequeno, mas acolhedor, perto da cozinha. Gostou logo do trabalho: cozinhar para a família, manter tudo organizado, ajudar Nina — tudo lhe parecia natural. Os patrões quase não estavam em casa, trabalhavam numa editora e só voltavam tarde.
Às vezes, Zhenya sentia-se observada. Certa vez, enquanto lavava a louça, virou-se e viu Kirill parado à porta.
— É a nossa tia? — perguntou ele à ama.
Nina riu-se, e Zhenya sentiu algo quente a derreter-se dentro de si.
A vida correu tranquilamente. Aos fins de semana, Zhenya encontrava-se com amigas do orfanato; no resto do tempo, dedicava-se ao trabalho. Quando a ama adoeceu, a responsabilidade de cuidar de Kirill foi dividida entre Nina e Zhenya. O menino era muito esperto e curioso. Frequentemente pedia para aprender a cozinhar:
— Ensina-me! Também quero ser cozinheiro quando crescer!
Zhenya mostrava-lhe com alegria como fazer panquecas de queijo. Kirill sentava-se num banco alto, balançava as pernas e fazia mil perguntas. Os seus olhos brilhavam quando surgiam novas ideias que queria realizar.
Um dia, perguntou de repente:
— Onde está a tua mãe?
— Não tenho mãe. Nunca tive.
— Então de onde vieste? Eu tinha uma mãe, agora não tenho mais…
Estas palavras chocaram Zhenya. Será que Margarita não era a mãe biológica de Kirill? Quis perguntar a Nina, mas nesse momento os patrões regressaram, e o menino correu para eles gritando “Papai! Mamãe!”
Dias depois, Zhenya presenciou uma cena estranha. Sergey saiu para trabalhar, e Margarita pediu-lhe que ficasse com o menino e também saiu. Quando o carro saía do quintal, Kirill correu até à janela e ergueu o punho, zangado.
— Não se deve fazer isso com a mamãe!
— Ela não é minha mãe! — gritou o menino, a voz trêmula de raiva e lágrimas. — Só chamo assim porque o papai obriga!
Zhenya ficou atordoada, mas rapidamente encontrou forma de o acalmar — sugeriu fazerem bolachas juntos. Kirill esqueceu os seus problemas, envolvido na tarefa.
Quando Margarita regressou, disse:
— Sergey pediu que levássemos Kirill. Vamos passar o fim de semana com amigos na casa de campo. Prepara a mochila dele.
Zhenya preparou tudo. Kirill pegou na mochila e correu para o carro. Zhenya seguiu atrás, mas no momento em que ele ia sair para a varanda, o carro começou a dar marcha à ré. Um segundo a mais e poderia ter acontecido uma tragédia. Zhenya conseguiu empurrá-lo a tempo.
O menino magoou o joelho e chorou.
— Porque não estavas a tomar conta do menino?! — gritou Margarita com raiva. — Nem o vi!
Kirill calou-se, pegou na mão da madrasta e sentou-se na cadeirinha. Antes de partirem, olhou para Zhenya e mandou-lhe um beijo no ar.
Mais tarde, Nina confirmou as suspeitas de Zhenya — Margarita não era a mãe biológica de Kirill. Depois do fim de semana, Sergey chamou Zhenya ao gabinete.
— Kirill contou… Disse que ela quis atropelá-lo.
— Não posso afirmar que foi de propósito. Mas sei que ele não quer chamá-la de mãe. Só o faz porque você manda. Ele é um menino incrível, mas está a sofrer muito.
Sergey ficou em silêncio.
— Pensei que se habituasse… É tão pequeno, achei que não entendia.
— Crianças dessa idade veem a mãe como parte de si mesmas. Substituir essa figura pode causar trauma.
No dia seguinte, chamou Zhenya outra vez, agora com Margarita presente.
— Diz-me, Zhenya, quando preparaste a mochila de Kirill, viste um tablet em cima da mesinha?
Zhenya acenou — sim, lembrava-se que o menino via desenhos antes de dormir.
— Depois disso, ninguém mais entrou no quarto, mas o tablet desapareceu.
O coração dela apertou. Estavam a acusá-la de roubo? Zhenya colocou a chave do seu quarto na mesa:
— Podem revistar.
— Não é preciso tanto. Vamos procurar juntos.
Nada foi encontrado no quarto. Mas na cozinha, dentro de uma gaveta de panos, encontraram o tablet.
— Achei! Achei! — gritou Kirill, feliz.
Sergey olhou para Zhenya com dúvida. Ela estava confusa.
— Eu não o peguei.
Kirill ouviu a conversa:
— Não ralhem com a Zhenya! Ela é boa! A Margô pegou o tablet, eu vi!
— Que estás a dizer?! — gritou a madrasta.
— Vi! Deitaste-me, depois pegaste no tablet e saíste. Eu não estava a dormir!
O menino ficou vermelho e correu para fora. Margarita correu atrás dele:
— Sergey, espera! Eu só queria carregar o tablet noutro sítio!
Ouviram-se passos a subir as escadas, gritos de Sergey e uma porta a bater. Margarita chorava, acusando o marido de confiar em todos, menos nela.
Depois, desceu até à cozinha:
— De onde veio esta rapariga?! Antes dela, vivíamos bem. Kirill chamava-me de mãe, agora evita-me como se eu fosse uma estranha!
Abriu o frigorífico, pegou numa garrafa e foi para o quarto. Meia hora depois, ouviram-se barulhos terríveis — Margarita, visivelmente embriagada, estava a destruir tudo.
Todos correram. Sergey tentava controlar a esposa:
— Chamem uma ambulância! Acho que ela teve um surto!
Margarita era forte. Agarrando Zhenya, rasgou-lhe a blusa. Sergey viu ao pescoço dela um cordão preto de seda com um crucifixo entalhado.
— De onde é isso?
— Desde que nasci. No orfanato disseram que a minha mãe o pôs em mim quando me deixou.
Volnov olhou-a de forma estranha. A ambulância chegou, deram-lhe uma injeção e levaram Margarita.
— Com este stress todo, até eu vou acabar num hospital psiquiátrico, — murmurou Sergey. — Anda, quero mostrar-te uma coisa.
Levou Zhenya ao escritório e tirou um álbum grosso de capa de couro.
— Este álbum foi feito pela minha primeira esposa, Ira — mãe do Kirill. Éramos colegas desde o quarto ano. Amávamo-nos desde jovens, separávamo-nos, voltávamos… e perdíamo-nos outra vez.
Contou-lhe a história do seu amor, da doença e da despedida. Ira morreu sem vencer a doença.
— Antes de morrer, confessou… que tinha tido uma filha comigo, mas nunca contou por medo. Os pais deram-lhe um ultimato: ou abandonava o bebé, ou perdia tudo. Tinha só dezasseis anos.
“Lembras-te do meu crucifixo, o que a avó me deu? — foram as últimas palavras da esposa. — Pendurei-o ao pescoço da nossa filha. Que a proteja por toda a vida.”
— Então… sou tua filha?
— Sim, Evgenia. Perdoa-me, nunca imaginei onde te procurar. Nasceste em Khabarovsk, ninguém sabia para que orfanato foste levada.
Zhenya folheava o álbum. Em todas as fotos — da infância à adolescência — a rapariga de cabelo ruivo usava o mesmo cordão de seda preto.
— Então o Kirill é o meu irmão?
— Que surpresa! Zhenya, fiquei menos emocionado por seres minha filha do que por descobrires que Kirill é teu irmão?
— Desculpa… é que já gosto tanto do Kirill! É meu amigo!
— Ótimo! Agora tudo vai mudar. Vou inscrever-te na faculdade, mandar a Margarita para tratamento. Só há um problema — vamos ter de arranjar uma nova cozinheira.
— Pai, talvez não seja preciso restaurante nenhum? Eu posso cozinhar para a família!
— De maneira nenhuma! Depois de teres passado a vida inteira em instituições, achas que vou poupar contigo? Vais estudar! E já estás a mudar-te para o segundo andar. Quero conversar contigo até me fartar!
Zhenya quis protestar, mas o pai aproximou-se e abraçou-a com força. Pela primeira vez na vida, sentiu que tinha uma família de verdade.